• Ricardo Calcini
• Leandro Bocchi de Moraes
Indubitavelmente, um dos assuntos mais constantes nos processos trabalhistas é a questão envolvendo o pagamento de horas extras. Isso porque a CLT possui alguns dispositivos que excluem do capítulo “jornada de trabalho” determinados trabalhadores em razão das atividades exercidas.
Dados estatísticos
De acordo como ranking de assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até abril de 2024, o tema “horas extras” encontra-se no quinto lugar, com aproximadamente 138.565 processos versando sobre o assunto, ao passo que a temática “duração do trabalho/horas extras” aparecia no 12º lugar, e, na 15ª posição, o ponto específico do “adicional de horas extras”.
À vista disso, muitas dúvidas e questionamentos aparecem no dia a dia das empresas e dos trabalhadores, afinal:
é devido ou não o pagamento de horas extras para quem exerce atividade de forma externa? Existe um regramento especial para tais trabalhadores? E, mais, é possível a realização de negociação coletiva para as questões envolvendo jornada de trabalho?
Por certo, considerando as polêmicas sobre o assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.
Legislação
Do ponto vista normativo no Brasil, de um lado, o artigo 7º, XIII [3], da Constituição, preceitua que a duração normal do trabalho não poderá ultrapassar o limite de oito horas diárias e 44 semanais; lado outro, o inciso XXVI [4] do mesmo dispositivo legal, reconhece a plena validade dos instrumentos coletivos.
De mais a mais, o artigo 62, I, da CLT [5], exclui do capítulo jornada de trabalho os trabalhadores que exercem atividades externas incompatíveis com a fixação de horário de trabalho, de sorte que tal situação deverá constar em CTPS.
Já o artigo 611-A da norma celetista, incluído pela Lei Reforma Trabalhista, dispõe que a convenção e o acordo coletivo terão prevalência sobre a lei quando dispuser sobre intervalo para refeição e descanso e modalidade de registro de jornada de trabalho.
Tema 1.046 do STF
É sabido que a Suprema Corte fixou a seguinte tese vinculante no Tema 1.046 da Tabela de Repercussão Geral:
“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Ora, a limitação da jornada de trabalho é um direito constitucional garantido a todos os trabalhadores, e que mesmo em se tratando de jornada externa que, em regra, impossibilitaria o deferimento de horas extras, caso fique comprovado nos autos que o empregador detinha meios de realizar o controle do horário, a exceção prevista no artigo 62, I, da CLT, será afastada.
Lição de especialista
Oportunos são os ensinamentos de Marcelo Braghini [6]:
“Em síntese, a exigência do inciso I do artigo 62 da CLT quanto aos “empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho” não confere qualquer discricionariedade ou conveniência ao empregador, trata-se de uma presunção da impossibilidade na prática da implantação do referido controle, podendo ser afastada pelas condições de execução do próprio contrato de trabalho, mesmo porque o trabalho a distância não gera qualquer padrão inferior de proteção trabalhista (artigo 6º da CLT).
Diante do caráter excepcional do direito fundamental de limite de jornada de trabalho, apenas aferível pelo controle, compete ao empregador – dicção da Súmula nº 17 do TRT da 5ª Região, sem excluir a possibilidade do empregado – comprovar a presumível incompatibilidade de controle, e ao empregado que o controle era exercido efetivamente na realidade contratual, mesmo que por meios indiretos.
Sob esta perspectiva, registre-se que para a efetiva aplicação do artigo 62, I da CLT, deve-se analisar a existência ou não se fiscalização quanto à jornada de trabalho e a compatibilidade de tal circunstância com a função exercida pelo empregado, de sorte que havendo fiscalização do empregador durante o trabalho exercido externamente no que se referem aos horários, não há falar, em tese, em aplicação da norma celetista.
Controle indireto
É certo que se o controle da jornada for feito por meios indiretos, tal comportamento empresarial poderá ensejar o pagamento das horas extraordinárias.
Vale dizer, ainda que o trabalho seja realizado fora das dependências do empregador, se houver meios efetivos para a fiscalização do horário, não há que se falar em ausência de controle de jornada.
A título de exemplo, pode-se mencionar o comparecimento diário na empresa no início e no final da jornada; o controle por meio de rastreadores via satélite; o acesso ao computador por meio do login e do logout; o uso de aplicativos de mensagens, dentre tantos outros meios digitais.
A propósito, nos dias de hoje, em razão dos avanços tecnológicos, não há dúvidas da possibilidade cada vez maior desse tipo de fiscalização.
Entrementes, não obstante a matéria envolvendo o trabalho externo e o pagamento de horas já tenha sido demasiadamente debatida no âmbito da Justiça do Trabalho, outra discussão que passou a ser levada ao Judiciário foi se o fato de haver a negociação coletiva sobre a jornada de trabalho, nos moldes de que a tese fixada pelo Pretório Excelso no Tema 1.046 afastaria, em tese, o pagamento das horas extras em caso de jornada externa.
Jurisprudência
A esse respeito, a Corte Superior Trabalhista já foi provocada a emitir juízo de valor acerca deste ponto controvertido, de modo que o entendimento caminhou no sentido de que havendo a possibilidade do controle do horário, ainda que que seja tal questão esteja pactuada via norma coletiva, o pagamento das horas extras será devido, ou seja, o tribunal fez um distinguishing para embasar a sua decisão [7].
Em seu voto, a ministra relatora ponderou:
“Retomando a fundamentação assentada no voto do Ministro Gilmar Mendes, relator no Tema 1.046, verifica-se que lá foi consignado que as normas coletivas que dispõe sobre jornadas de trabalho ‘devem respeitar balizas fixadas pela legislação e pela própria jurisprudência trabalhista’. O art. 62, I, da CLT dispõe que não são abrangidos pelo Capítulo III (DA DURAÇÃO DO TRABALHO) ‘os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados’. Portanto, sendo compatível o controle de jornada, ou havendo o próprio controle de jornada, os trabalhadores em atividade externa devem observar a jornada máxima e têm direito ao pagamento de horas extras quando for o caso”.
Sob este enfoque, verifica-se que, sem adentrar nos planos de existência e de validade da norma, o TST entendeu que o instrumento coletivo não poderá determinar inicialmente se há ou não possibilidade de fiscalização da jornada, de sorte que tal análise será feita na casuística, a partir das premissas fáticas.
E sendo assim, o debate não se resolve pela prevalência do negociado sobre o legislado, mas pela constatação da sua não aplicação ao caso concreto, quando se verificar o uso controle de horário para quem, segundo a lei, deveria ser excluído, como ocorre com o trabalhador externo.
Conclusão
Em arremate, uma vez constatada a efetiva viabilidade do controle de jornada, ainda que por meios indiretos, o empregador poderá ser condenado ao pagamento de horas extras, sendo afastada a aplicação do artigo 62, I, da CLT.
Logo, é preciso ter cautela e verificar se o caso concreto atrai a incidência da tese vinculante firmada no Tema 1.046 do STF da Tabela de Repercussão Geral, até porque a parte trabalhadora nem sempre estará enquadrada necessariamente no modelo padrão previsto na norma coletiva.
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[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[3] CF, Art. 7º (…). XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
[4] CF, Art. 7º (…). XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
[5] CLT, Art. 62 – Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo: I – os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;
[6] Direito do trabalho e processo do trabalho em volume único – 2. Ed. – Leme-SP: Mizuno, 2022. Página 409/410.
Ricardo Calcini
é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
Leandro Bocchi de Moraes
é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (Ius Gentium Coninbrigae), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).